Eduardo Mesquita

E lá se foram três anos.

Três anos desde a última vez em que eu havia colocado a mochila nas costas, apertado os cadarços do coturno e “enfiado a cara na saroba”. Para quem não conhece o termo, não precisa se preocupar ou horrorizar. Saroba é mato. Aqui em Goiás é o mato rasteiro típico do cerrado. Eu faço parte de um grupo chamado CROTALUS Aventura, que existe para fazer acampamentos, marchas no mato, aventuras no ambiente natural, ou como eu gosto de apresentar, um grupo de trilha.

E lá se iam três anos. Os motivos são enormes e longos, não cabem nesse texto, mas por uma tonelada e meia de questões pessoas e particulares eu não acampei nem fiz trilha por estes anos todos, e sempre vendo nas redes sociais meus parceiros de grupo acampando, marchando, desbravando e se aventurando nos finais de semana que as profissões lhes permitiam. Não foi fácil esperar. Mas finalmente em 2017 eu consegui colocar todos os planetas em alinhamento e ia para o mato.Hummm… todos ainda não, mas alguns tantos.

Entrei em contato com o Alberto Escher, o Minduim, avisando que estava de volta à ativa e solicitando um plano de ação para aventurar e tirar a poeira do equipamento. Se bem que no caso o mais certo seria “colocar poeira no equipamento”, porque enquanto ficam guardados no armário mantem-se limpinhos e, na verdade, não existem para isso.

Com alegria de moleque tirei tudo do armário, testei os equipamentos mais cruciais para a aventura, e fui avisado pelo Minduim que iríamos conhecer a Cidade de Pedra. Se você procurar no Google, vai encontrar algumas cidades de pedra pelo país, mas a que íamos desbravar era conhecida como “A misteriosa Cidade Das Pedras”, o que já provocava a curiosidade e vontade de romper mato. Quer dar uma vista no que vimos? Confere essa reportagem feita lá – http://g1.globo.com/goias/videos/v/globo-reporter-visita-a-misteriosa-cidade-das-pedras-em-pirenopolis-goias/3234492/ – e veja que ele subiu numa pedrinha de lá. Enfim…

Tudo preparado, mochila pronta, lâminas afiadas, fui ao encontro dos dois fritos que seriam meus parceiros dessa aventura. Minha amada e meus filhos foram me deixar no local de encontro, e os guris empolgados porque já estávamos combinados que a próxima aventura no mato seria com a presença dos dois. Fomos então ao encontro doMinduim, que é a minha referência de conhecimento mateiro (junto com o pai dele, o Grande Lobo) e um novo sujeito que eu ainda não conhecia: Zé Renato (precisamos pensar num apelido para ele). Entramos na viatura e rompemos em direção à Cocalzinho.

Cabe um comentário. Enquanto discutíamos a aventura, eu e Minduim encontramos um obstáculo: a falta de lugar seguro para deixar o carro próximo à serra. E Minduim sugeriu que fôssemos andando de Cocalzinho até a base da serra, coisa de uns 18 ou 20 km. E eu – irresponsável e sem noção – topei na hora, afinal de contas era “marcha leve, sem dificuldades”. Graças ao bom vento do norte as pesquisas e levantamentos que o Minduim e o Zé fizeram descobriram um sujeito valioso morando na base da serra, e iniciando uma pousada em sua casa – Valdeir do Cerrado. Isso foi um livramento.

Na estrada, ainda no asfalto, Zé comenta sobre uma caminhada de 20 dias que ele havia feito. Eu estava no banco traseiro, janelas abertas, julguei não ter entendido e me aproximei do banco perguntando: “Vinte Km de marcha?”, já julgando uma caminhada longa. Eu corro diariamente 3 a 4 km, então em uma semana eu teria andando vinte quilômetros, não é pouco. O Zé sorri e sem mudar o rumo da prosa, me corrige: “Vinte km não, vinte dias caminhando”. VINTE DIAS!! E ainda completou dizendo que fazia isso algumas vezes por ano.

Gelei. Gente que anda vinte dias sem parar não se cansa nunca. Esses miseráveis micróbios que entram em comunhão com a natureza!! Que azar maldito me colocou do lado de um doido que anda vinte dias sem parar??? Eu não merecia um castigo desses, afinal de contas mesmo me preparando e reforçando os exercícios nas semanas anteriores ao acampamento, eu sei das minhas limitações. E vinte dias caminhando é um limite bastante claro para mim. Olhava para o Zé com um misto de medo e preocupação, lamentando a hora que sentei no mesmo carro que esse doido.

E ele ainda comenta que por 15 anos foi artesão, viajando de cidade em cidade, não tendo pouso ou parada, até resolver fazer biologia, mestrado e dar aulas. Isso é gente certa da cabeça? Eu ainda me limito a entender porque dizem que eu sou doido. Olha o tipo de gente que eu ando!! E esse micróbio ainda viajava pelo país todo – mesmo depois de ter deixado o artesanato de lado – de bicicleta. Mochilas aos montes, estrada pela frente, incerteza no cardápio e bicicleta. Eu estava verdadeiramente lascado de verde e amarelo.

Enfim… três anos sem acampar e sem trilha. Vamos nessa.

Chegamos em Cocalzinho, porque para entrar no parque de preservação e ir para a Cidade de Pedra seria mais próximo por este município, e não por Pirenópolis. Ao entrarmos na estrada de terra eu conheci a “trilha leve, caminho tranquilo” que quase enfrentamos andando. Seria uma rematada insanidade, já reconheci de cara. Além do fato óbvio – que o bestunto aqui parecia ignorar – de que 18 km são chão pra caramba, a estrada subia e descia o morro, a serra, e não ia ser moleza atravessar tudo aquilo com as mochilas e o sol. Se tivesse rolado essa caminhada seria a única caminhada da viagem inteira, porque certamente teríamos chegado mortos na base da serra e tudo estaria perdido. Para compensar, uma parada na estrada para vermos o visual maravilhoso e comermos azedinha, uma folha do cerrado deliciosa, melhor que chiclete. Lembrei da minha infância, quando meu pai me mostrava os pés de azedinha nas fazendas dos parentes em Catalão. Boas lembranças.

Enfim, chegamos na casa do Valdeir do Cerrado, figura super do bem, que conhece toda a região e tem imensa experiência com turismo na área. Chegamos e já nos esperava uma jantinha delícia com um frangão caipira, feijão, arroz, salada e uma pimenta deliciosa. Comemos como se não houvesse amanhã, tomamos algumas cervejas e logo estávamos arrumando pra dormir. Nos “hospedamos” nessa noite no alpendre da casa do Valdeir, sacos de dormir no chão e a ansiedade do dia seguinte. Dormi feito uma criança.

Acordamos cedo no outro dia e fomos conhecer uma cachoeira próxima à base. Chamada Cachoeira das Freiras, que rebatizamos de Cachoeira do Valdeir. Um banho de cachoeira é algo que você precisa fazer pelo menos uma vez na vida. Eu recomendo pelo menos uma vez por ano, mas uma na vida já te mostra o que é maravilhoso na existência. Pra variar tomei um tombaço chegando na cachoeira, mas sem sequelas. O banho na cachoeira, nadar no rio, sentir o vento frio, tudo isso te faz novo de novo. Mas nossa missão era maior que isso, íamos subir a serra até a Cidade de Pedra.

Então logo nos equipamos para subir a serra. Eu não tinha ideia do que vinha pela frente. Logo nos primeiros metros de jornada eu me lembrei que uma caminhada com mochila nas costas não é um passeio no shopping, e o peso da mochila, a necessidade de equilibrar de forma certa, a busca pelo ritmo dos passos, tudo isso foi me trazendo as lembranças físicas do que é fazer trilha a pé. E eu adoro.

Já entramos no caminho comendo umas goiabas brancas deliciosas (comemos muito bem nessa trilha!) e quando chegamos ao pé da serra, começamos a buscar a trilha que nos levaria ao alto do morro. E não achamos. E entramos no mato por um lado, achamos uma cachoeira, mas não achamos a trilha. Voltamos, descemos, fomos pelo outro lado, achamos um brejo, mas não achamos a trilha. E aí então Zé e Minduim tiveram a ideia de subir o morro “por ali mesmo” e achar uma nova trilha. Cabe comentar que a essa altura, com uma ou duas horas de marcha, eu já estava ofegante e reduzindo o ritmo, atrasando o grupo todo. Reconheço.

Minduim parecia um monge de bermuda e uma “precata” feita de um fio só. Eu e meu coturno achamos aquilo maluquice, mas ele ia tranquilo. E o Zé… o Zé não cansa. Miserável!

Começamos a subir o morro no peito e na raça, pelo meio do mato. Já seria cansativo andando com serenidade e nenhum peso, mas a mochila levava perto de uns 10 kilos de comida, equipamento, troços. Esses quase 10 kilos já estavam pesando quase 50 no meio do começo da subida.

Sim, você leu direito: o meio do começo. Mal sabia eu do que viria pela frente. O mato alto, algumas vezes fechado, pedras (muita pedra) gigantes, subida, mochila, preparo físico patético (e olha que eu tinha me preparado), e tome mais mato alto, subida, mochila, rochas, e eu tinha que ir dando umas paradas estratégicas em intervalos regulares. Parava para recuperar o fôlego, baixar o ritmo cardíaco (depois que eu morri tenho que tomar cuidado com isso, né? Não quero morrer de novo) e me perguntar: porque eu resolvi fazer isso mesmo? E aí eu lembrava os motivos, olhava em volta e via o tanto de mato e natureza e coisas lindas, e enfiava o pé na saroba. E nessas horas, normalmente, Minduim e Zé já estavam muito a frente.

Chegamos numa parte que a subida empinava de verdade, tínhamos que ir ajoelhando e rastejando nas pedras para que as mochilas não nos puxassem para baixo. E somado a isso, começa uma chuvinha de molhar bobo. Se você conhece a expressão “chuva de molhar bobo”, sabe muito bem que é uma chuvinha leve, tímida, mas que te encharca até os ossos da alma se você não se proteger. Paramos para colocar os ponchos e capas de chuva, e lá embaixo no vale um vaqueiro deu um grito de saudação. Minduim e eu estávamos colocando os ponchos, e ele comenta “O cara deve achar que a gente tá perdido” e eu respondo “Ou deve achar que a gente é doido!”. E então me toquei que se o vaqueiro estivesse pensando essas coisas ele estaria certo nas duas, estávamos perdidos e não éramos os mais mentalmente equilibrados das arquibancadas.

Gente, era um final de semana, sabadon, quando a maioria dos viventes estava tomando uma cerveja ou se recuperando de ter escrito “SEXTOU! BALADA TOP!” nas redes sociais, nós estávamos subindo um morro com mochilas nas costas, chuva no lombo e sem rumo.

Esqueci desse detalhe, estávamos seguindo o GPS do Zé, e naquele momento eu começava a questionar a funcionalidade do equipamento, porque não tínhamos achado a trilha, não tínhamos achado trilha nenhuma, estávamos rompendo pelo meio do mato e o topo do morro parecia do outro lado. Do outro lado do planeta! Parado numa pedra, esperando um sinal para ver se deveria subir o morro ou não, tomando chuva, eu comecei a rir sozinho. Gente, é bom demais fazer isso! Uma pena que no meio do mato fechado eu havia perdido minha capanguinha de cenoura crua que sempre levo nas marchas. Mas já morto de cansado, suado, fedido, com algumas machucaduras pelo corpo, olhando para o morro acima que eu ia ter que subir, e eu estava me sentindo muito bem. Emocional e psicologicamente, claro. Fisicamente eu estava em trapos.

Minduim subiu e deu o sinal, era minha vez. Reiniciar a marcha depois que você para era quase tão difícil quanto continuar a marcha sem parar, mas lá fui eu e já comecei a encontrar as formações rochosas lindas da região. E os sons? Só alguns poucos pássaros (estava chuviscando nessa hora) e o vento, e o vale láááá embaixo, e as minhas articulações rangendo, e meus ossos estalando, e meu pulmão chiando e meu coração a duzentos e setenta e oito por minuto. Que sons lindos!!

No alto do morro encontramos uma estrada, sinal de que a Cidade de Pedra já estaria mais próxima, pelo menos já estávamos no alto do morro. Não dava para subir mais, eu pensava. Idiota.

Saímos pela estrada e aí eu vi que estava cansado, porque andando no plano e em linha reta, e eu não conseguia acompanhar os dois. Logo estavam muitos metros à frente. Algumas vezes paravam, me esperavam chegar e voltavam a andar, ou seja, eu nunca parava direito porque sempre que me aproximava eles retomavam a marcha.

Até o momento que o GPS riu da nossa cara, apontou para um caminho que uniria o nada com o lugar nenhum, e o Zé aceitou o fato de que o GPS ia nos levar para Zâmbia, mas não ia achar a Cidade de Pedra. E ele ficou visivelmente chateado, porque conhecia o local, porque já tinha estado lá antes, porque nós o chamávamos de “Nosso GPS humano” e ali estávamos os três, molhados, suados, cansados e perdidos. Resolvemos voltar nos passos, buscar achar no rumo ou então ir para a Cachoeira dos Dragões e fazer pouso lá.

Mas eis que no meio do retorno, algo inspira os dois e eles resolvem “entrar ali e acampar por ali mesmo” e nesse “entrar ali” o GPS da cabeça do Zé deu um reboot. Eis que ele reconhece o caminho, e então estávamos no rumo da Cidade de Pedra. Eu já estava abandonado pelos músculos. Cada passo já era uma aventura própria, e os dois foram em frente.

Infelizmente a estradinha era toda coberta de areia. Já andou cansado na areia? É sofrido. Mas felizmente a estradinha era toda coberta de areia. Eu via os passos dos dois nitidamente desenhados no chão e pude seguir no meu ritmo arrastado-zumbi-nunca-desisto. Ao entrar na Cidade de Pedra confesso ter me arrepiado, o portal da Cidade é lindo de enlouquecer. É imponente. É majestoso, e me perdoe a sinceridade, mas fotos e vídeos não são suficientes para entender e alcançar isso. Só estando lá dentro, no meio das pedras, naquele silêncio e você compreende a beleza.

Zé foi procurar água, Minduim começou a arrumar algo para comermos e eu – literalmente – arriei deitado numa pedra. Só tirei as luvas, chapéu e gandola, todos encharcados e deitei numa pedra. Quase dormi.

Minduim fez um delicioso pão de queijo de frigideira, que recheamos com bacon e tomates secos no azeite. Esse foi o acampamento mais gourmet da minha vida, comemos bem demais! E eu nem mexi no feijão que tinha levado. Depois de comermos beeeem, resolvemos descer mais no vale da Cidade de Pedra para acampar, afinal ali no portal poderíamos ter visitantes indesejados à noite. E não estou falando de onças, lobos, raposas ou morcegos, esses tudo bem. Eu estou falando de turistas. Tivemos um contato imediato com quatro sujeitos que chegaram em suas bermudas de tactel, suas papetes de marca, suas camisetas dry-fit e penteados engraçados, e não foi divertido para nenhum de nós. Se a gente se enfia no mato para ficar um pouco longe da humanidade, não íamos ficar ali num local que poderíamos ser alcançados pelo tal bando. Descemos e entramos na Cidade de Pedra.

Isso depois de subirmos num mirante insano, alto pra caramba, vermos até o outro lado da existência e ficarmos de boca aberta com tudo que ainda não tínhamos conhecido. Sensacional!

Descemos, e tome-lhe pedra, mochila, cansaço, articulações, pedra, cansaço, mochila até chegarmos num local bom de pouso. Cercados pelas torres de pedra e pelo céu, lugar melhor não haveria. Montei minha tenda, estiquei minha rede (até hoje nunca dormi em barraca nos acampamentos, sempre na rede) e fiz algo que estava maluco para fazer: tirei o coturno e as meias. Encharcados, pesados, friosfriosfrios e gelados. Logo uma pequena e cuidadosa fogueira já ardia e eu pude colocar meus pés, minhas meias e meus coturnos próximos ao fogo para voltarem à temperatura normal.

Esticar a rede foi outra aventura, porque tentei usar um outro recurso para pendurar a minha rede, ao invés das velhas cordas de sempre. E foram dois tombos bestas quando o “novo recurso” não aguentou meus 80 kilos. Humpf! Depois das quedas, tudo funcional e pronto.

Como é escuro fora da cidade! Assamos uma carne de sol, tomamos cachaça, rimos e a noite estava excelente. Fui dormir com o peso da marcha e apaguei em segundos. Cabe comentar que na noite anterior, no alpendre do Valdeir, os dois sujeitos ficaram impressionados com a velocidade que eu apaguei e caí no sono. Dessa vez fui ainda mais veloz para os braços de Morfeus.

Acordar em acampamento é sempre um duelo entre a vontade de ver o dia raiar no mato e a preguiça gostosa de ficar mais um pouco embolado na rede.  Levantei e fui recebido com o aroma do café fresco e uma deliciosa tapioca com queijo e tomate seco, que bom dia BOM! Agora era retomar marcha e ir conhecer as Cachoeiras dos Dragões. Desmontamos o acampamento e subimos a Cidade de Pedra novamente, e tome-lhe mochila, pedra, subida, articulações, e lá vamos nós. E o Zé ainda queria explorar a Cidade de Pedra, sair pelo outro lado, aventurar até não sei mais onde… lembra que não cansa, o sujeito? Cansa não!  Tivemos que tirar essa ideia da cabeça dele, senão íamos levar mais um dia caminhando.

De volta pra estrada a marcha estava mais fácil, descansado e alimentado. Mas logo o corpo ia mostrar que limite é troço real, e o cansaço ia juntando de novo. Mas marchar com caras como Minduim e Zé é bom demais, um porque é sereno feito um búfalo, e o outro é biólogo e conhece tudo de planta. Logo eu estava provando um galho chamado “pau doce”. Come-se a casca, e é docinha mesmo! Dali a pouco no meio do caminho uma aranha caranguejeira – chamada Tarântula Brasileira – do tamanho da minha mão salta na minha frente e atravessa nosso caminho, linda demais! Anda mais!

A marcha ia longa, o sol subindo, meus passos lentos, mas firmes. Quer dizer, não muito firmes, mas decididos. Decididos a seguir os dois que não se cansavam nunca e pareciam não fazer força nenhuma. Lá na frente um pé de bacupari carregadinho de deliciosos e doces frutos nos recebeu em sua sombra, e não fosse pela temperatura ambiente da fruta eu diria que estávamos chupando picolés, de tão doce que estavam. Vamos andando… entramos na região das Cachoeiras dos Dragões e a trilha não era mais gentil, para apimentar ainda mais o caminho de brejo, pedra, escorregões e ladeiras, começa novamente a chover. Ponchos, capas e tome-lhe marcha.

Confesso que quando chegamos à cachoeira, a oitava cachoeira dos dragões, chamada “Cachoeira do Dragão Rei” eu fiquei impressionado. Mas estava muito destruído de novo. Sentei e vi, entre admirado e puto, meus dois parceiros de marcha andando lépidos e fagueiros pela cachoeira, para lá e para cá, para cima e para baixo, e eu só conseguia ficar sentado debaixo do meu poncho sentindo a chuva. Quando a chuva parou animei dar uma andada, e mais surpreso ainda eu fiquei. Que lugar lindo! Mas estava eu sentado olhando de longe quando Minduim voltou de um mirante que havia mais adiante. “Cara, você tem que ver aquilo, é maravilhoso”.

Eu não estava conseguindo. “Você filmou? Depois me mostra a filmagem.”. E ele não desistiu e me deu uma grande lição “Cara, a filmagem não vai te mostrar tudo que é aquilo lá. Você tem que ver”. Sou mais curioso do que sensato, e mesmo praguejando e xingando até a quinta geração do Minduim, me levantei e arrastei meu corpo moído para o tal mirante. E até hoje e para sempre eu vou agradecer a insistência do Minduim. Não existe uma palavra que descreva a beleza de uma queda d´água que, no meu ponto de vista de psicólogo, deve ter perto de uma centena de metros. De pedras amarelas e douradas, de água límpida, cercada por uma mata verde escura, de pura beleza natural. Impressionante.

Quando voltei para junto dos dois me lembrei que eu não havia entrado na cachoeira porque estava com preguiça de tirar e depois ter que recolocar o coturno e as meias. Me senti um idiota, que novamente ia deixar passar uma oportunidade inesquecível e entrei na cachoeira do jeito que eu estava, com roupa, coturno e tudo. Uai, a chuva ia me molhar mesmo!! E nessa hora eu não consegui segurar, saí da cachoeira e sentei numa banheira natural no chão e chorei. Chorei feito criança, porque a emoção foi forte demais. E brinquei na água como criança. E ali fui feliz como criança, e quase esqueci que estava cansado.

Quase.

Porque tome-lhe marcha para voltar para a base. Zé ainda queria mostrar todas as cachoeiras, eu não permiti. “Vamos pelo caminho mais curto de volta pra base!”. E tome marcha. Eu mais lento, cansado, arrastando, eles marchando mais a frente, passeando, não cansam nunca, os desgraçados!!! E a chuva recomeça… pensei “Quer saber, vou parar pra colocar poncho mais não, agora só paro na base ou quando cair morto. QUER CONFORTO FICA EM CASA!!! NEM QUE MORRA!!!” e  rompi chão. E nessa hora, debaixo da chuva mais forte que enfrentamos, quase torrencial, eu marchei como se não tivesse andado tanto. A chuva me animou demais da conta! Animado, pilhado, puxando o grupo, estava novo e ressuscitado. Ainda achamos um pé de goiabas do cerrado, do tamanho de jurubebas, mas deliciosas como goiabas, e tome-lhe marcha morro abaixo.

Tudo ia bem até o Zé achar um caminho mais com cara de Zé. Teríamos que atravessar o rio pela Cachoeira do Valdeir, antiga Cachoeira das Freiras. O único detalhe é que não havia ponte ou pinguela ou travessa ou nada, seria pelo meio do rio mesmo. Meu coturno não tem muita aderência com o solado molhado, e minhas pernas estavam amolecidas e derretidas pelo cansaço, e aí você junta tudo isso para atravessar pelas pedras do rio com a mochila nas costas. Tombo.

Não foi um tombaço, mas atravessar aquelas pedras com os pés escorregando e os músculos desobedientes foi uma aventura a mais. Depois subir pelas paredes de pedra, depois subir pelo morro, depois subir pela trilha até chegar na estrada. Eu estava no fim da bateria realmente.

E ao chegar na estrada o Zé vira e me pergunta: “Cara, tu tá cansado, quer que eu leve sua mochila?”.

Gelei. Gente que anda vinte dias sem parar não se cansa nunca. Esses sensacionais e espetaculares micróbios que entram em comunhão com a natureza!! Que sorte abençoada me colocou do lado de um iluminado que anda vinte dias sem parar??? Eu não merecia um presente desses!  Olhava para o Zé com um misto de gratidão e admiração, louvando a hora que sentei no mesmo carro que essa criatura especial.

E nesse trecho final de estrada ele carregou minha mochila. Isso foi ótimo. E foi péssimo. Foi ótimo porque eu realmente teria dificuldades para esse último trecho carregando a mochila, e ele me aliviou desse peso. E foi péssimo porque eu não podia ficar para trás, agora que já não carregava mais a mochila. Tinha que acompanhar. E tome pernada para seguir os dois.

Chegamos na base, na casa do Valdeir e o Zé ainda nos preparou um delicioso macarrão integral com tomate seco e carne seca e bacon. Comi novamente como um paxá. E aí era hora de voltar pra casa. Mas não sem antes mais uma aventura.

No caminho de volta a Cocalzinho existe um desvio, uma curva que deve ser feita para se entrar na cidade. Se você não faz essa curva, tem que passar pelo rio para entrar na cidade. Qualquer pessoa sensata e equilibrada teria retornado e procurado a tal curva, mas não nós! Porque a aventura nunca termina para quem está com Zé Renato. Enfiamos o carro pelo rio, a água sobe até entrar no carro, entrar no escapamento, e lá vamos nós rio a frente, rio adentro, rio afora.

Pegamos a estrada de volta para Goiânia. Eu não conseguia andar direito de tanta dor nos músculos da perna. Cheguei em casa me arrastando, levei três dias para voltar a andar normalmente, mas agora só uma coisa me preocupa: quando é o próximo acampamento??

P.S. – quer ver o vídeo que eu fiz dessa aventura? Você vai ver as cachoeiras, as frutas, as chuvas, só não vai ver as dores (mas vai entender o que eu senti). Clica em https://youtu.be/OiDPt6nVLBc e depois de assistir deixa o seu comentário.

Há braços!

Eduardo Mesquita

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